Tuesday, June 14, 2005



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Deste modo ou daquele modo,
Conforme calha ou não calha,
Podendo as vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer;
Como se escrever não fosse uma coisa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma coisa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.

Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras a ideia
E não precisar de um corredor
Do pensamento para as palavras

Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.

Procuro despri-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,

Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Cairo,
Mas um animal humano que a natureza produziu.

E assim escrevo, querendo sentir a natureza, nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Ora acertando com o que dizer, ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.

Ainda assim, sou alguém.
Sou o descobridor da natureza.
Sou o argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.

Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são quase cinco do amanhecer
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos

“Alberto Caeiro”

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